3- Por falar em pessoas especiais
Por falar em pessoas especiais Uma criança frágil, de pele muito clara, agraciada por Deus com lindos olhos azuis, prenunciando talvez um mar de bondade e delicadeza, traços que seriam marcantes em sua personalidade. Os dias felizes da infância, ele os passa ao lados dos irmãos e dos primos, entre brincadeiras comuns como soltar pipas, jogar bolinha de gude, subir em árvores, mocinho e bandido, os carrinhos de boi "puxados" por sabugos. Já maiorzinho, livre e solto pelos arredores da então pequenina Monsenhor Paulo, atrás de gabirobas e araçás. Aos domingos, às escondidas do pai tão severo, a diversão preferida: os banhos na Cachoeirinha do Senhor Oto, onde a garotada da época aprendia a nadar. Mas, logo cedo, o trabalho passa a fazer parte de sua vida, pois a família é grande e as dificuldades são tantas... De início, pequenas obrigações como engraxar sapatos ou buscar leite na fazenda do avô Adamo; não demora muito, já está trabalhando na oficina de ferreiro do pai, onde, entre a forja e a bigorna, a ajuda das crianças é sempre bem-vinda. Os irmãos agora já são dez: João Bosco, Maria Alice e o caçula Fernando, completando a grande família, orgulho dos pais e animação na casa simples e humilde. Mas o tempo passa rápido, chega a hora de ir para a escola: Grupo Escolar Professor João Mestre, as letras (G.E. P.J.M) carinhosamente bordadas pela mãe, no bolso do uniforme. A primeira professora, Dona Luizinha, com a sensibilidade comum às verdadeiras professoras, percebe que aquele é um garoto diferente. Ao contrários dos irmãos, sempre agitados e peraltas, seu jeito introspectivo a cativa e ela percebe que seu ritmo de aprendizagem é diferente. Prolonga então o período de aula em sua própria casa, onde, com carinho e atenção, ajuda-o a penetrar nos mistérios das primeiras letras, das primeiras palavras. E surge a paixão pela leitura, a vida povoada por personagens fantásticos como o gigante de "João e o Pé de Feijão" ou simples como Joca, o coelho que come as cenouras da horta de seu Joaquim. Dona Glória, Dona Lúcia, Dona Neide, são muitas as professoras, todas tão queridas e atenciosas, a perceberem que este é um garoto especial: o jeito um tanto retraído, o gosto pela poesia, pela música, pelo teatro. A adolescência, a mudança de escola, a "importância" de estar na quinta série. A Escola Estadual Presidente Kennedy, os companheiros inseparáveis. Novas professoras, irmã Lígia, Irmã Serena, e a preferida...Irmã Diomira, a que ensina francês, uma língua que o fascina. A coleção de postais dos países da Europa, presente da professora e amiga. Através deles, o agora jovem "viaja" e, na sua imaginação conhece o Big Ben, o Arco do Triunfo, e, maravilha das maravilhas... a Torre Eiffel. É também desta época, a primeira grande perda - a do irmão Aldo, vida ceifada no vigor dos dezenove anos. A primeira, a grande, a enorme dor de toda a família. Agora, ao final do segundo grau. A vontade e a necessidade de alças vôos mais altos... A cidade de São Paulo, trabalhar, ganhar dinheiro, fazer a vida. Sonhos, sonhos, versus a realidade nua e crua da vida na "Paulicéia Desvairada". O retorno à querida Monsenhor Paulo, marca a fase adulta. O trabalho no escritório da Indústria Aliança, os amigos inseparáveis: Bié, Darci, Pé Véio, Boreska. A criação do jornal "A Equipe", as apresentações de peças teatrais e os Carnavais. Ah! os carnavais. A abertura com a tradicional volta na Praça Coronel Flávio na famosa "Limosine" e o desfile em carros alegóricos com lindas fantasias. São Paulo continua sendo o local onde vai buscar cultura, assistir às peças com Cacilda Becker, a atriz preferida, comprar livros mais atuais, para se deliciar com a leitura dos mesmos, deitado na rede, na varanda do Sítio "Jatobá". É tudo tão vivo na memória, parece que foi ontem. A elegância, a roupa discreta, mas bem talhada, o cabelo sempre bem cuidado. O grande amor pelos sobrinhos, pelas crianças carentes e pelos idosos, presentes dados fora das datas especiais, surpresas, palavras de carinho. As visitas às escolas, à querida Dona Amélia, ao colégio Sion, em Campanha, para horas de longos bate-papos com as queridas e agora idosas irmãs. O bem, feito sem olhar a quem, a ajuda discreta aos amigos. Julho de 1989 - a inesperada, a terrível doença. Os meses de sofrimento intenso, a dor de toda a família, o despojamento, já não importando os bens materiais. Falávamos de pessoas especiais, de presentes, de prêmio. Foi um privilégio conviver com o Paulo, desfrutar de sua companhia. Foi maravilhoso receber sua atenção, seu carinho. "Mergulhar" nos seus olhos azuis, deliciar-se com a conversa descontraída e as vezes cômica. Quando, no dia 8 de outubro de 1989, Deus quis de volta o presente, a marca de sua passagem pela vida já era tão profunda que permaneceu nítida e hoje, temos a sensação de nunca tê-lo perdido. Nepomuceno, 11 de novembro de 2003 - Vera Lúcia |